Acordei cedo, alguns colegas de quarto acordaram mais cedo e acordei com os madrugadores já saindo para o cruzamento dos Pirineus. Desci para o café da manhã e ouvi do dono do Refúgio Orisson que seria perigoso tentar a travessia. Houve uma forte nevasca, inesperada e fora de época durante a noite, e certamente as trilhas estariam cobertas por neve e gelo, e isso tornaria a travessia perigosa porque em alguns pontos a trilha não tem mais do que 1,20 mt de largura, e sempre do lado direito de quem sobe o barranco é na verdade um precipício de uns 900 mts de profundidade. Em maio de 2013 um brasileiro de Petrópolis escorregou no gelo exatamente neste trecho, caiu no precipício e quebrou o pescoço, falecendo no local.
Eu já sabia dessas intempéries dos Pirineus; às 15:00 hs o dono do Refúgio demonstrava um certo nervosismo pelos que já haviam subido a trilha para Rocesvalles de manhã cedo, e vi duas viaturas no estacionamento do Refúgio: uma da Gendarmerie Nationale, a polícia francesa, e outra da mesma Arma, mas especializada em resgate em montanhas (carro azul e branco e carro vermelho e branco), uma nova nevasca havia caído no cume da montanha, próximo do ponto onde se vira à direita (DIREITA HEIM!?) e inicia-se a longa descida para Roncesvalles. Por experiência, percebi que o risco era grande, e eu não estava ali para transformar um sonho em uma aventura com consequências que eu não teria controle, e decidi ficar mais um dia em Orisson. Decisão acertada, porque ao final da tarde as viaturas saíram em disparada montanha acima, com sirenes ligadas, e logo depois apareceram uns peregrinos pré-congelados, com cãibras e falando coisas desconexas, os funcionários do Refúgio enfiando-os de roupa e tudo embaixo dos chuveiros com água quente, o dono falando alto ao telefone visivelmente nervoso, e no jantar a notícia: um japonês desaparecido (nunca foi encontrado, pelo menos até 2014), 4 peregrinos congelados sendo que um teve os dedos dos pés e de uma mão amputados. Na minha mesa durante o jantar, um silêncio sepulcral, e várias garafas de vinho além do cálice gratuito (literalmente todos encheram a cara de vinho naquela noite)...
Naquela noite, deitado no meu beliche, um filipino chorando em um outro beliche e sons de pessoas discutindo vindo do corredor, percebi que escolhi uma concepção correta na vida: viver no limite do que Deus nos permite suportar, mas abraçar a Sua bênção do Livre Arbítrio, e dar quantos passos para trás quantos forem necessários, porque a bênção da Vida não pode ser desperdiçada por impulsos mal-pensados, adrenalina momentânea ou mesmo as mais belas fotos...
Foi minha primeira Lição no Caminho de Santiago de Compostela!!
Não vou postar fotos nesse post, em respeito aos peregrinos que sofreram naquele dia.
“Posso ter defeitos, estar ansioso ou ficar irritado algumas vezes, mas não esqueço de que minha vida é a maior empresa do mundo. E que posso evitar que ela vá à falência.
Ser feliz é reconhecer que vale a pena viver, apesar de todos os desafios, incompreensões, dúvidas e períodos de crise. A Vida é um risco, mas um risco controlado....
Ser feliz é agradecer a Deus a cada manhã pelo milagre da vida.”
Que assim seja!