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O CRUZAMENTO DOS PIRINEUS
O CRUZAMENTO DOS PIRINEUS

Após a tragédia do dia anterior, decidi arriscar a subida e travessia dos Pirineus em direção a Roncesvalles.

Acordei cedo e o dia estava bom, com nuvens mas sem neve (que foi a traição), e vi vários peregrinos seguindo montanha acima. Achei que hoje daria, então tomei meu café da manhã, arrumei minhas coisas, conferi tudo, duas meias, dois agasalhos mais uma capa de chuva, me despedi do dono e dos funcionários do Refúgio Orisson e segui montanha acima.

A subida é duríssima, mas devagar se chega ao topo. Só que bem no meio do caminho o tempo mudou bruscamente e começou a nevar, e os ventos são fortíssimos na medida em que você sobe a montanha. Chegou um momento que a coisa começou a ficar perigosa, eu estava com muito frio por causa da nevasca e o vento, minhas roupas eram inadequadas e mesmo com óculos a neve machucava meu rosto e o ritimo da caminhada diminuía a cada nova curva.

Percebi alguns peregrinos retornando, morro abaixo, dizendo que lá em cima a neve havia tomado conta da trilha. Tentei mais um pouco, mas a trilha por vezes desaparecia debaixo da neve, ficava estreita e passei a caminhar junto ao barranco à esquerda, porque à direita havia o tal precipício onde caiu e faleceu o brasileiro dois meses atrás.

Aquilo já começava a ficar perigoso demais, e ao passar pela imagem da Virgem de Biakorre, a uns 900 metros do topo e do início da descida para Roncesvalles, a razão falou mais alto que o coração, e olhando para alguns peregrinos que desapareciam na névoa metros à frente, decidi que ali era meu limite. Deu vontade de chorar naquele momento, mas a respiração estava difícil naquele frio de doer, aquela Santa à minha esquerda parecia me encarar, à direita o precipício onde não se via o fundo, e sei lá o que me deu eu dei meia volta e comecei a descer a passos acelerados.

Eu gritava para os que subiam “too dangerous, too dangerous run back, run back!!! Snow storm above, run back!!! (perigosos demais, perigoso demais, voltem, voltem, tempestade de neve acima, voltem!)” E graças a Deus, todos começaram a descer inclusive um casal e uma moça do Brasil, que estavam já meio assustados com aquela situação de neve que caia com cada vez mais intensidade e a força do vento gelado que rasgou minha capa de chuva.

Quando você caminha morro abaixo com grande inclinação, você usa mais músculos (para freiar a descida) do que para subir, e aí meus problemas começaram a aumentar: começei a sentir fortes cãibras e dores musculares intensos por causa do frio e do esforço, e por vezes eu tinha que parar de caminhar porque travava desde as minhas pernas até às costas. A moça brasileira que me acompanhava chegou a pegar minha mochila, e ficou comigo o tempo todo, e alguns peregrinos quando olhavam para trás e viam aquela situação em que eu estava, voltavam e ofereciam ajuda, revezavam para carregar a minha mochila, me ajudavam com as câibras, e assim descemos os 14 km de volta ao Refúgio Orisson, aos trancos e barrancos, mas todos juntos. Essa foi mais uma lição do Caminho de Santiago de Compostela: você ali nunca está sozinho! Tem gente boa nesse mundo, ainda há empatia entre os Homens de diversas raças e culturas, e Deus escreve certo em linhas retas, basta que saibamos interpretar seus desígnios...

A chegada ao refúgio foi tumultuada, muito nervosismo, o dono novamente falando alto como se estivesse muito “puto” conosco (os peregrinos), mas fomos levados direto para o banho quente, aqueles que eles identificaram com hiportemia, eu no meio é claro...

Após o banho quente revigorante (um banho diferente, porque no início dói muito), trocar de roupa e um esporro em francês do dono do Refúgio que não entendi bulhufas porque não falo francês, todos, absolutamente todos os que voltaram se reuniram no restaurante e foram muitas, mas muitas garrafas de vinho e brindes em vários idiomas!! Aquele dia eu fui pra cama literalmente bêbado, e mesmo assim custei a dormir!

“Ser feliz é agradecer a Deus a cada manhã pelo milagre da vida.”

(há mais fotos, que estão em outro notebook, a ser recuperado. Assim que ele for recuperado postarei mais fotos aqui dessa fase do Caminho de Santiago)